Texto: Sidney Bretanha e Anelize Carriconde
Cenário com
um espelho (ou penteadeira), uma cadeira, alguns móveis. A professora Lourdes
entra em cena, cheia de livros na mão, bolsa a tiracolo e ar de exausta. Joga
os livros sobre a mesa, senta-se pesadamente em frente ao espelho, e começa a retirar
jóias, remover maquiagem e se despir bem devagar.
- Tu estás velha Lourdes, totalmente velha. Olha só
isso, rugas, pé de galinha, cabelos brancos, tetas caídas e essa cara de xonha.
Tens mais que abandonar essa coisa de educação de uma vez por todas, ninguém te
respeita mesmo, sua velha maluca!
- Estou velha sim, minha querida! Mas de um
jeito que não é possível enxergar a olho nu. Queres realmente me ver? Tens que
me olhar nos olhos... aí saberás do que estou falando, talvez compreendas este
amor que sinto pela educação! (calma, tranquila, firme e desafiadora)
- Olha! Olha bem no fundo! Estás vendo?
Estás enxergando? Me diz! Terás de ver todos esses anos dentro de salas, e
salas, e salas de aula... Todas elas lotadas com os filhos de outras pessoas
que muitas vezes nem conheço, mas que sei que podem fazer a diferença no mundo.
Eu sei a importância que tenho e qual o meu valor para este mundo. Você também
deveria saber, Lourdes. Já deverias ter aprendido! (segura,
confiante, imponente)
- Eu até concordava contigo, Lourdes, mas isso no
começo. Ah, o meu começo... eu fazia tantos planos de aula, comprava livros
diferentes, utilizava cartazes, enfim, MIL ideias. E também recebia flores, cartinhas
dos alunos, carinho e companheirismo das colegas. E até mesmo as tradicionais
maçãs de presente da turma. Mas, aos poucos, sem perceber, as coisas foram
mudando, mudando, mudando. Eu passei a receber bocejos, indiferença,
telefonemas agressivos, MUITAS reclamações. Aí, meus planos brocharam, os
livros... ficaram muito caros... os cartazes – ninguém olha mesmo – para que
tantas idéias? Enfim, aceitei que sou uma coadjuvante apenas. Só você que ainda
não compreendeu isso, sua velha ultrapassada! (conformada, esnobe, debochada)
- Concordo que a escola vai perdendo o
encanto, mas é nosso dever manter a chama da educação acesa! Quando colocamos
nossa vida no magistério temos um desafio pela frente e não podemos fugir dele.
Tu não sentes vontade de interferir de maneira positiva na vida das crianças e
dos jovens? Torná-los melhores? Ensinar! Ensinar! E ensinar, numa luta brava
por dias e pessoas melhores! Isso não te fascina mais? Não acredito! Não podes
perder o encanto assim! (vibrante, empolgada, cheia de entusiasmo)
- Há não Lourdes, não me venha com essa conversa.
Falando assim parece muito é fácil. Fácil é ficares aí me julgando, sua velha. Fácil
é querer me comparar com uma Leda Conceição, com uma Marlise Silva e tantas
outras mestras. Mas vou te dizer uma coisa: nenhuma delas teve que competir com
um celular! Nenhuma delas foi destratada no Facebook. O Dr. Aimone, quando
ensinava francês, nem fazia ideia de que um dia ia aparecer uma língua nova: o tal
internetês! E no meio disso tudo, eu ainda tenho que ensinar o português! Isso
é impossível, hoje em dia! Ainda mais para mim, que não faço a mínima idéia de
quem são esses tais whatsap e Instagram. Não tem como, sua velha maluca! É bem
mais fácil cumprir o meu horário e esperar a aposentadoria, que certamente não
vai ser grande coisa! Mas, ao menos, deve dar para comprar os remédios da
velhice! (sorridente, caçoando, convicta)
- Aí é que tu te enganas! (irritada,
forte, indignada) (pausa)
- Com o que? Tu achas que aposentadoria de professor
dá para alguma coisa que não seja apenas sobreviver, e olha lá? Enlouqueceu de
vez, velha? (convencida, superior)
- Não, Lourdes, sei muito bem
que a nossa realidade não é das melhores. Sei que não recebemos nem o salário e
muito menos a consideração que esta sociedade nos deve. Mas NADA disso diminui
o que somos! Somos mestras! Podemos mudar a história e, através da educação,
criar um novo mundo, onde outros mestres como nós não tenham que passar por
tudo isto que nós passamos. A sala de aula é nosso campo de batalha! Não
podemos desistir. Somos a peça mais importante deste quebra-cabeça. Se
desistirmos TUDO estará perdido!
- Lourdes, Lourdes, sua velha caduca! Eu já tentei de
tudo, TUDO mesmo! Tentei ser a melhor de todas, fiz cursos, tentei cumprir à
risca o Paulo Freire. Tentei me importar com a realidade e com as
particularidades de cada aluno, ser fiel aos meus princípios de educador.
Talvez estejas te esquecendo, mas esse comportamento NEM SEMPRE é uma boa
ideia. Tem muita gente que não gosta desse tipo de colega. O CDF não é o mais
popular e querido entre os colegas de magistério, não é mesmo? Ou será que além
de velha você é tonta, que nunca percebeu isso? (irônica, desdenhando)
- Sim, eu sei que não, mas...
mas... mas... (triste, desorientada,
falando alto, porém quase perdendo fala)
- Mas coisa nenhuma, sua velha! Antes a gente fazia 03
anos e meio de magistério, aprendia a lidar com as crianças, aprendia como
enfrentar TODOS os problemas do dia-a-dia de uma sala de aula. A Flávia
Conceição não nos deixava piscar, era tudo que sonhávamos em ser ao longo da
profissão. A Mariana Messon nos OBRIGAVA a sermos as melhores, a darmos exemplo.
Tínhamos “status”, respeito, salário. Mas sabe o que aconteceu? Foram
transformando a nossa matéria prima, a nossa essência. Foram falsificaram os
ingredientes dos quais somos feitos. E agora temos que provar TODOS OS DIAS o
nosso valor, a nossa importância, o porquê precisamos estar SEMPRE presentes na
vida das pessoas. Temos que pedir esmolas pra governos, sofrer humilhações
diárias. Um absurdo! Antes as escolas tinham nome de professor: Aimone
Carriconde, Neir Horner, Maria da Silva Soares, Dionísio de Magalhães. Agora
elas carregam os nomes dos políticos (os mesmos que congelam os nossos
salários)! Tu estás me entendendo, sua velha louca? Dá pra ver a diferença,
agora? EU QUERO MAIS É QUE SE FODA A EDUCAÇÃO! Não tô nem aí, afinal, ninguém
se preocupa comigo mesmo!
- Bom, a julgar pelo teu linguajar, talvez
não sejas mesmo uma boa profissional! Isso lá é jeito de uma mestra falar? Que
modos são esse? Não te envergonhas? (indignada, firme, passando um sermão)
- É apenas um desabafo, Lourdes! Tu entendeste muito
bem, não te faças de boba! (repreendendo,
respondendo à altura)
- Tudo bem, eu compreendo tudo
isso que dizes! Está difícil para nós! Mas acabastes de citar tantos exemplos
de educadores. Se ainda te lembras tão bem deles é porque te marcaram, porque
foram fundamentais para seres o que és hoje. Esta é nossa missão, Lourdes,
formar cidadãos sábios, honrados e honestos. Formar cidadãos que possam melhorar
este mundo!
- O quê? Não! Nem vem, sem essa de “formar cidadãos”.
Esse papo já era. Quem formava cidadãos era a Elisa Messom, a Rosa Silveira, o
Ronaldo Costa... ELES mandavam dentro da sua sala de aula. ELES tinham
autoridade suficiente pra corrigir o que estava errado e elogiar o que estava
certo! ELES eram autoridades DE VERDADE! Nós já não somos mais, sua velha
louca! Nós perdemos a guerra! Sabes quem manda na sala de aula hoje? Sabes? Sabes?
Se não sabes, eu vou te dizer! Quem manda é o ECA, os pais (que muitas vezes
conhecem seus filhos muito menos do que nós), a internet, a promotoria, o
governo, o partido do governo e até os alunos. Nós não somos mais NADA!
- Somos SIM! Somos a esperança
Lourdes! Somos a força da pedagogia, da filosofia, das ciências humanas e
exatas! Temos um poder que NINGUÉM tem! Temos o quadro negro à nossa frente e a
capacidade de impulsionar sonhos, de mudar o curso das coisas, de apresentar um
bom caminho para as novas gerações. Eles precisam MUITO mais de nós agora! Nossa
missão é ainda mais importante nos dias de hoje! Precisamos lutar até o fim!
Nossa luta será vitoriosa! Quem sabe até não voltamos a ganhar maçãs de
presente?!
- Ah, eu já sei o que tu estás tentando, velha. Queres
me convencer que ainda é possível. Tentas me fazer acreditar que ainda posso
ser um exemplo. Um herói. Um multiplicador de esperanças. Ahhhh... como posso
alimentar esperança no coração de alguém, se o meu próprio coração já não tem
mais esperanças? A cada ano, deixo mais um pedaço de esperança nas calçadas da Praça
da Matriz. Não consigo mais... (desesperada, quase em prantos)
-
Não é desânimo não. Nem preguiça. Muito menos falta de profissionalismo.
Afinal, acabei de chegar de mais um dia “daqueles”. E amanhã vou encarar horas
de seminário, pra ouvir na teoria tudo que na prática, quase nunca funciona. O
que toma conta de mim agora é um vazio, uma sensação de estar em frente a uma
encruzilhada. Ter que escolher a direção é um fardo! (decepcionada, perdida)
- Não fale assim, Lourdes! Não
sofra, minha amiga! Seja valente, tu consegues... (sendo alentadora, consolando)
- Não velha... Quer saber de uma coisa? Vou pra cama,
pedir ao meu travesseiro que me ajude a decidir. Se sigo mesmo sendo professora...
ou se vou abrir uma loja de roupas na Dr. Monteiro. Boa noite, velha!
- Boa noite, Lourdes, durma
bem! Pois eu vou preparar meu plano de aula, e vou tentar fazê-lo melhor do que
ontem! O melhor que eu puder fazer! E quando eu achar que está bom, vou tentar
fazer ainda melhor! Eu sou uma MESTRA! Sou uma mestra e quero um mundo melhor
para meus filhos e para meus amigos! Quero um mundo melhor para mim também,
porque EU SOU ESSE MUNDO! (pausa) Esse
mundo é uma imensa sala de aula! (pausa)
Eu sou esse mundo! (pausa) Nós somos
esse mundo! (pausa) Vocês são esse
mundo! Bem vindos à sala de aula!
Nenhum comentário:
Postar um comentário