domingo, 23 de agosto de 2015

Reflexos da Mestra

Texto: Sidney Bretanha e Anelize Carriconde



Cenário com um espelho (ou penteadeira), uma cadeira, alguns móveis. A professora Lourdes entra em cena, cheia de livros na mão, bolsa a tiracolo e ar de exausta. Joga os livros sobre a mesa, senta-se pesadamente em frente ao espelho, e começa a retirar jóias, remover maquiagem e se despir bem devagar.

- Tu estás velha Lourdes, totalmente velha. Olha só isso, rugas, pé de galinha, cabelos brancos, tetas caídas e essa cara de xonha. Tens mais que abandonar essa coisa de educação de uma vez por todas, ninguém te respeita mesmo, sua velha maluca!

- Estou velha sim, minha querida! Mas de um jeito que não é possível enxergar a olho nu. Queres realmente me ver? Tens que me olhar nos olhos... aí saberás do que estou falando, talvez compreendas este amor que sinto pela educação! (calma, tranquila, firme e desafiadora)
- Olha! Olha bem no fundo! Estás vendo? Estás enxergando? Me diz! Terás de ver todos esses anos dentro de salas, e salas, e salas de aula... Todas elas lotadas com os filhos de outras pessoas que muitas vezes nem conheço, mas que sei que podem fazer a diferença no mundo. Eu sei a importância que tenho e qual o meu valor para este mundo. Você também deveria saber, Lourdes. Já deverias ter aprendido! (segura, confiante, imponente)

- Eu até concordava contigo, Lourdes, mas isso no começo. Ah, o meu começo... eu fazia tantos planos de aula, comprava livros diferentes, utilizava cartazes, enfim, MIL ideias. E também recebia flores, cartinhas dos alunos, carinho e companheirismo das colegas. E até mesmo as tradicionais maçãs de presente da turma. Mas, aos poucos, sem perceber, as coisas foram mudando, mudando, mudando. Eu passei a receber bocejos, indiferença, telefonemas agressivos, MUITAS reclamações. Aí, meus planos brocharam, os livros... ficaram muito caros... os cartazes – ninguém olha mesmo – para que tantas idéias? Enfim, aceitei que sou uma coadjuvante apenas. Só você que ainda não compreendeu isso, sua velha ultrapassada! (conformada, esnobe, debochada)

- Concordo que a escola vai perdendo o encanto, mas é nosso dever manter a chama da educação acesa! Quando colocamos nossa vida no magistério temos um desafio pela frente e não podemos fugir dele. Tu não sentes vontade de interferir de maneira positiva na vida das crianças e dos jovens? Torná-los melhores? Ensinar! Ensinar! E ensinar, numa luta brava por dias e pessoas melhores! Isso não te fascina mais? Não acredito! Não podes perder o encanto assim! (vibrante, empolgada, cheia de entusiasmo)

- Há não Lourdes, não me venha com essa conversa. Falando assim parece muito é fácil. Fácil é ficares aí me julgando, sua velha. Fácil é querer me comparar com uma Leda Conceição, com uma Marlise Silva e tantas outras mestras. Mas vou te dizer uma coisa: nenhuma delas teve que competir com um celular! Nenhuma delas foi destratada no Facebook. O Dr. Aimone, quando ensinava francês, nem fazia ideia de que um dia ia aparecer uma língua nova: o tal internetês! E no meio disso tudo, eu ainda tenho que ensinar o português! Isso é impossível, hoje em dia! Ainda mais para mim, que não faço a mínima idéia de quem são esses tais whatsap e Instagram. Não tem como, sua velha maluca! É bem mais fácil cumprir o meu horário e esperar a aposentadoria, que certamente não vai ser grande coisa! Mas, ao menos, deve dar para comprar os remédios da velhice! (sorridente, caçoando, convicta)

- Aí é que tu te enganas! (irritada, forte, indignada) (pausa)

- Com o que? Tu achas que aposentadoria de professor dá para alguma coisa que não seja apenas sobreviver, e olha lá? Enlouqueceu de vez, velha? (convencida, superior)

- Não, Lourdes, sei muito bem que a nossa realidade não é das melhores. Sei que não recebemos nem o salário e muito menos a consideração que esta sociedade nos deve. Mas NADA disso diminui o que somos! Somos mestras! Podemos mudar a história e, através da educação, criar um novo mundo, onde outros mestres como nós não tenham que passar por tudo isto que nós passamos. A sala de aula é nosso campo de batalha! Não podemos desistir. Somos a peça mais importante deste quebra-cabeça. Se desistirmos TUDO estará perdido!

- Lourdes, Lourdes, sua velha caduca! Eu já tentei de tudo, TUDO mesmo! Tentei ser a melhor de todas, fiz cursos, tentei cumprir à risca o Paulo Freire. Tentei me importar com a realidade e com as particularidades de cada aluno, ser fiel aos meus princípios de educador. Talvez estejas te esquecendo, mas esse comportamento NEM SEMPRE é uma boa ideia. Tem muita gente que não gosta desse tipo de colega. O CDF não é o mais popular e querido entre os colegas de magistério, não é mesmo? Ou será que além de velha você é tonta, que nunca percebeu isso? (irônica, desdenhando)

- Sim, eu sei que não, mas... mas... mas... (triste, desorientada, falando alto, porém quase perdendo fala)

- Mas coisa nenhuma, sua velha! Antes a gente fazia 03 anos e meio de magistério, aprendia a lidar com as crianças, aprendia como enfrentar TODOS os problemas do dia-a-dia de uma sala de aula. A Flávia Conceição não nos deixava piscar, era tudo que sonhávamos em ser ao longo da profissão. A Mariana Messon nos OBRIGAVA a sermos as melhores, a darmos exemplo. Tínhamos “status”, respeito, salário. Mas sabe o que aconteceu? Foram transformando a nossa matéria prima, a nossa essência. Foram falsificaram os ingredientes dos quais somos feitos. E agora temos que provar TODOS OS DIAS o nosso valor, a nossa importância, o porquê precisamos estar SEMPRE presentes na vida das pessoas. Temos que pedir esmolas pra governos, sofrer humilhações diárias. Um absurdo! Antes as escolas tinham nome de professor: Aimone Carriconde, Neir Horner, Maria da Silva Soares, Dionísio de Magalhães. Agora elas carregam os nomes dos políticos (os mesmos que congelam os nossos salários)! Tu estás me entendendo, sua velha louca? Dá pra ver a diferença, agora? EU QUERO MAIS É QUE SE FODA A EDUCAÇÃO! Não tô nem aí, afinal, ninguém se preocupa comigo mesmo!

- Bom, a julgar pelo teu linguajar, talvez não sejas mesmo uma boa profissional! Isso lá é jeito de uma mestra falar? Que modos são esse?  Não te envergonhas? (indignada, firme, passando um sermão)

- É apenas um desabafo, Lourdes! Tu entendeste muito bem, não te faças de boba! (repreendendo, respondendo à altura)

- Tudo bem, eu compreendo tudo isso que dizes! Está difícil para nós! Mas acabastes de citar tantos exemplos de educadores. Se ainda te lembras tão bem deles é porque te marcaram, porque foram fundamentais para seres o que és hoje. Esta é nossa missão, Lourdes, formar cidadãos sábios, honrados e honestos. Formar cidadãos que possam melhorar este mundo!

- O quê? Não! Nem vem, sem essa de “formar cidadãos”. Esse papo já era. Quem formava cidadãos era a Elisa Messom, a Rosa Silveira, o Ronaldo Costa... ELES mandavam dentro da sua sala de aula. ELES tinham autoridade suficiente pra corrigir o que estava errado e elogiar o que estava certo! ELES eram autoridades DE VERDADE! Nós já não somos mais, sua velha louca! Nós perdemos a guerra! Sabes quem manda na sala de aula hoje? Sabes? Sabes? Se não sabes, eu vou te dizer! Quem manda é o ECA, os pais (que muitas vezes conhecem seus filhos muito menos do que nós), a internet, a promotoria, o governo, o partido do governo e até os alunos. Nós não somos mais NADA!

- Somos SIM! Somos a esperança Lourdes! Somos a força da pedagogia, da filosofia, das ciências humanas e exatas! Temos um poder que NINGUÉM tem! Temos o quadro negro à nossa frente e a capacidade de impulsionar sonhos, de mudar o curso das coisas, de apresentar um bom caminho para as novas gerações. Eles precisam MUITO mais de nós agora! Nossa missão é ainda mais importante nos dias de hoje! Precisamos lutar até o fim! Nossa luta será vitoriosa! Quem sabe até não voltamos a ganhar maçãs de presente?!

- Ah, eu já sei o que tu estás tentando, velha. Queres me convencer que ainda é possível. Tentas me fazer acreditar que ainda posso ser um exemplo. Um herói. Um multiplicador de esperanças. Ahhhh... como posso alimentar esperança no coração de alguém, se o meu próprio coração já não tem mais esperanças? A cada ano, deixo mais um pedaço de esperança nas calçadas da Praça da Matriz. Não consigo mais... (desesperada, quase em prantos)
            - Não é desânimo não. Nem preguiça. Muito menos falta de profissionalismo. Afinal, acabei de chegar de mais um dia “daqueles”. E amanhã vou encarar horas de seminário, pra ouvir na teoria tudo que na prática, quase nunca funciona. O que toma conta de mim agora é um vazio, uma sensação de estar em frente a uma encruzilhada. Ter que escolher a direção é um fardo! (decepcionada, perdida)

- Não fale assim, Lourdes! Não sofra, minha amiga! Seja valente, tu consegues... (sendo alentadora, consolando)

- Não velha... Quer saber de uma coisa? Vou pra cama, pedir ao meu travesseiro que me ajude a decidir. Se sigo mesmo sendo professora... ou se vou abrir uma loja de roupas na Dr. Monteiro. Boa noite, velha!


- Boa noite, Lourdes, durma bem! Pois eu vou preparar meu plano de aula, e vou tentar fazê-lo melhor do que ontem! O melhor que eu puder fazer! E quando eu achar que está bom, vou tentar fazer ainda melhor! Eu sou uma MESTRA! Sou uma mestra e quero um mundo melhor para meus filhos e para meus amigos! Quero um mundo melhor para mim também, porque EU SOU ESSE MUNDO! (pausa) Esse mundo é uma imensa sala de aula! (pausa) Eu sou esse mundo! (pausa) Nós somos esse mundo! (pausa) Vocês são esse mundo! Bem vindos à sala de aula!

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