quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Os sapatos do defunto

Seu Olegário, homem simples, trabalhador rural. Dedicou sua vida às lides campeiras, tinha muita sabedoria das manhas do gado. Baixinho, corpo mirrado, não tinha vícios maiores a não ser o cigarrito de palha após as refeições.
Mas... a idade foi chegando e seu Olegário teve que visitar o médico. Tarefa que sempre empurrava para adiante, tinha pavor de sala de espera, onde - sem nada pra fazer - as pessoas ficavam olhando, analisando umas às outras. Coisa que desagradava seu Olegário era alguém olhá-lo por mais de dois segundos. Mas não teve jeito, e foi consultar o doutor. As notícias não eram boas: por causa de um diabetes medonho, o doutor avisou ao seu Olegário que teria de amputar as duas pernas. A la maula! Que desgraça! O velhinho saiu dali já pensando que melhor seria dar cabo da vida logo de uma vez. Pra quê diabos serviria um trabalhador do campo sem as duas pernas?
Pouco tempo depois (pois a doença não dava trégua) foi feita a operação. E do hospital saiu aquele toquinho de gente, mais arrasado do que açude em tempos de seca.
A primeira visita que recebeu foi do vô Avelino. Seu melhor amigo, parceiro de tantas marcações e de longas conversas nos finais de tarde no galpão. Pois o vô Avelino teve a tarefa de consolar o seu Olegário nesses primeiros dias até se acostumar com a nova situação. Várias vezes chegava em casa aborrecido, cabisbaixo. E a gente perguntava: - O que foi vô? No que ele respondia: - Tô preocupado com o Olegário. Tá cada dia mais acabrunhado, parece que está desistindo de viver, não se conforma com o seu estado.
E foram passando os dias do seu Olegário e do vô Avelino, que levava o amigo pra dar umas voltas pelo campo, num carrinho de mão, pra ver se dava uma animada no véio.
Mas... eis que o destino se cumpriu e numa manhã de terça-feira o seu Olegário finalmente descansou da vida de toquinho de gente.
O vô Avelino até que reagiu bem, pois sabia que o amigo estava sofrendo amargurado com aquele estado que se encontrava. Foi melhor assim.
Chegamos no velório do seu Olegário, por volta das duas da tarde, eu e a mãe. O vô ficou pra trás pois não abria mão da séstia - nem em dia de velório. - De que adianta eu não sestiar? Por acaso vou ressuscitar o defunto? Era a resposta dele quando perguntado.
Pois, quando o vô Avelino entrou na capela mortuária, muito solenemente, cabeça baixa, percorreu a platéia para ver se nos enxergava e quando deu de olhos com minha mãe, veio direto a nós.
- E aí? Tudo certo?
- A mãe, entendendo que ele estava tenso (o vô Avelino não era muito chegado em velório e cemitério, tinha medo que os defunto quisessem ficar com ele por lá), resolveu descontrair:
- Pai, o senhor viu que lindos os sapatos novos que compraram para enterrar o seu Olegário? Acho que nem em vida ele calçou um tão elegante.
   O vô fez uma cara de É mesmo? E quase agradecendo a deixa da mãe, dirigiu-se até o caixão. Levantou a mortalha que cobria o seu Olegário bem na parte dos pés e, não conformado com o que viu ainda apertou as pernas das calças que imediatamente afundaram lembrando o vô Avelino que o defunto era aleijado. Furioso, consciente que tinha caído numa armadilha, voltou e atropelou a minha mãe:
- Em que mundo nós estamos vivendo? Que absurdo? Nem os mortos merecem mais respeito? Além de roubar os sapatos, roubaram até as pernas do pobre do Olegarinho!!!!!
E dito isto, saiu em disparada e não voltou mais, nem pra carregar o caixão do amigo!

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